domingo, 21 de dezembro de 2008

Festivale - Festival de Teatro do Vale do Paraíba - Fundação Cultural Cassiano Ricardo
Crítica dos espetáculos
Espetáculo: SENHORA DOS AFOGADOS
SENHORA DOS AFOGADOS: UM NELSON RODRIGUES (SUB)VERTIDO BUARQUIAMENTE
Último espetáculo da 23° edição do Festival de Teatro do Vale do Paraíba. Ainda
bem, para nós todos que acompanhamos o festival, em seus dez dias de intensa atividade,
termos tido oportunidade de assistir a tão belo e surpreendente espetáculo. Trata-se, em
qualquer dúvida, de um dos mais belos momentos do festival.
Ao ser avisado que mais um espetáculo com texto de Nelson Rodrigues seria
apresentado fiquei inquieto. Minha apreensão aumentou quando soube que se tratava de
Senhora dos afogados. Afinal, mesmo não apreciando o autor, havia assistido
recentemente duas vezes a montagem do mestre Antunes Filho... Muitas imagens daquela
montagem – apresentada pelo CPT, no Teatro Anchieta, de São Paulo e no Festival
Internacional de Teatro de São José do Rio Preto – faziam-se, ainda, presentes em mim.
Ao entrar no Cine Santana, em 22/11, para assistir à montagem do espetáculo
quatro focos de luz iluminam igual número de cadeiras, sobre as quais repousa um portacírio,
do qual se esvai, na forma de fumaça, alguma espécie de incenso. Portanto, são
quatro vezes quatro: imagem repleta de simbologia, e, reparei, fascinava a muitos que se
encontravam n platéia. O criador desta primeira imagem e de várias outras surpreendentes
é o diretor do espetáculo Zé Henrique de Paula. Fora do palco, mas a ele colado, no
espaço, se houvesse, a que se chama fosso de orquestra, duas musicistas: Fernanda Maia
(piano elético) e Kalyne Valente (violoncello).
Lembrando as magistrais procissões de Antunes Filho, mas sem nada dever-lhes ou a
elas atrelarem-se, o grande elenco forma um féretro para acompanhar Clarinha, uma das
filhas dos Drummond recentemente morta. O encontro entre os participantes deste
féretro: o coro dos vizinhos com Dona Eduarda, a mãe e Moema, a filha ocorre com o canto
de Pedaço de mim. A junção da imagem do começo com o canto (que, basicamente, se
caracterizara no leitmotiv da obra) denota a grande obra que se assistirá. Se no texto
original Nelson Rodrigues fala em personagens hieráticas – e do mesmo modo como Antunes
Filho já fizera, desde Paraíso zona norte –, na encenação de Zé Henrique de Paula somamse
a esse caráter hierático, o marmóreo e o grotesco.
Os desenhos de cena são clássicos e requintados. Tudo parece preparado para unir
deslocamentos e enquadramentos da cena às músicas cantadas às interpretação do
conjunto de atores – formado por vinte e um integrantes, preparados competentemente
pelas hábeis mãos de Inês Aranha – no sentido de contrapor-se à fala de Dona Eduarda a
Moema, segundo a qual: “Estar com você é a pior forma de estar sozinha.” Os quatro
atores que fazem os vizinhos, que também correspondem aos corifeus do coro maior: Diana
Troper, Fabio Redkowicz, Paulo Bueno, Thiago Ledier são grotescos, anti melífluos (talvez
por ALEXANDRE MATE
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Nelson Rodrigues dissesse: espécie de câncer na forma de gente...) são belos, sobretudo
Diana Troper.
O magistral trabalho de escolha da trilha e o seu cantar pelos atores do elenco,
entre o climático emocional e determinadas alusões épicas, ficou a cargo de Fernanda
Maia. A seleção das músicas, basicamente amparada em Chico Buarque de Hollanda,
apresenta-se no canto dos atores sempre próximo daquilo que talvez se pudesse nomear:
como uma oitava acima. O canto mostra o paroxismo sufocante da situação vivida pelas
personagens. Realmente, trata-se de um belíssimo trabalho que redimensiona o texto
rodrigueano.
Outro ponto absolutamente destacado é o trabalho de interpretação. Se é sempre
bom ver João Bourbonnais em cena, como Misael e como cantor é melhor ainda. Trata-se
de um grande momento do ator. A jovem atriz Marcella Piccin, tem uma aparência frágil,
mas se agiganta em cena. As cenas entre a filha e a mãe, apresentada por Einat Falbel,
caracteriza-se em um belo duelo: do canto à intensidade dramática. Marcelo Góes
incorpora-se à boa composição do quarteto protagônico, ao qual se soma Paulo Carreira,
também excelente cantor.
Não se sabe se sempre, mas, a partir de certo momento, as personagens aparecem
descalças. As pessoas com quem conversei após o espetáculo, assim como eu mesmo, não
saberiam dizer se as personagens aparecem descalças desde o início... Claro, muito há a
olhar... Moema, depois de todas as mortes acontecidas aparece de traje branco, com
sapatos da mesma cor. O descalçamento dos pés, é seguro, deve conter alguma metáfora,
mas àquela altura (a da percepção disso), parafraseando Drummond: “(...) teu sapato de
diamante, vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva
do tempo.”
No geral, tanto Inês Aranha como Zé Henrique de Paula cuidaram de todos os atores:
há unidade e densa mistura de realismo e teatralidade em suas composições. As
prostitutas, entretanto, precisam alguma revisitação. Algumas delas praticam ações que
destoam do caráter clássico a partir do qual a obra foi composta. Algumas prostitutas
relacionam-se algumas vezes de modo meio débil. Para que olhar a roupa de baixo quando
Dona Eduarda é levada para junto delas? Por que duas delas ficam dobrando lençóis ou
coisa assim durante uma cena? Trata-se de ações inúteis, penso! Melhor seria se elas
cuidassem de si: de seu corpo, de suas roupas.
Trata-se de um espetáculo de acertos que toma Nelson Rodrigues para (sub)vertê-lo
buarquiamente. Que o espetáculo consiga ainda muitos espaços de apresentação e muitos
processos de troca com a platéia.
Alexandre Mate
Professor e pesquisador de teatro
26/11/2008

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